Wednesday, September 13, 2006

PAULO JOSÉ MIRANDA: Escrever muito ou pouco

Certa vez ao intentar uma apresentação de Paulo José Miranda , escritor, poeta e dramaturgo português - para o público brasileiro, demonstrei minha admiração pelo fato de o autor ser tão jovem e já ter escrito tanto.

Não fiz juízo de valor, não demonstrei absolutamente nada além do interesse, digamos, informativo que é natural.

A matéria nunca foi realizada, mas Paulo José Miranda enviou para o Imagens e Palavraseste texto de que gostei muito e que resolvo publicar aqui, sempre lamentando que aoesar das tentativas que fiz, não se chegou a bom termo.


Eis o texto, leiam e façam, se assim o desejarem, suas considerações:


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Desde o meu começo como escritor, em 1998 (no ano anterior tinha publicado apenas um livro de poesia), que fui acusado de escrever muito. Isso lembra-me uma estória contada pelo meu amigo e filósofo António C. Caeiro, que ele presenciou num aldeia de Trás-os- Montes: um homem era acusado de beber muito, bebia três garrafões de vinho por dia, 15 litros, e um dia respondeu a quem o acusava “vocês só vêem o que eu bebo, não vêem a sede que eu tenho”. Ora, precisamente! De onde vem a sede, isso já é uma outra estória.

"Em três semanas, trabalhando de sete a dez horas por dia, principalmente à noite, ele [Sade] redige em minúsculas letras, num rolo de papel de doze metros de comprimento, o manuscrito ao qual dará o nome de Les 120 Journées de Sodome ou Lécole de Libertinage.. Quatro anos depois, às vésperas da Revolução, quando é transferido pela primeira vez para o sanatório de Charenton, o Marquês de Sade tem uma obra de quinze volumes.” (in Sade – A Felicidade Libertina, de Eliane Robert Moraes, Imago, Rio de Janeiro, 1994)

Podem encontrar justificativa de tanta produção literária pelo facto de Sade se encontrar na prisão, pois caso estivesse livre isso não aconteceria. Sem dúvida, correcto. Não tenho dificuldades em anuir com esse argumento. Também eu quando não me sinto preso deixo de escrever. O problema é que a maior parte do tempo me encontro preso. Não entre as grades de uma prisão, mas entre as grades de todas as convenções sociais da beleza, do estatuto e do dinheiro. A beleza já se foi; estatuto não tenho nenhum, nem emprego; e quanto ao dinheiro, bom, vou tendo em doses de sobrevivência, por caridade de amigos e familiares. Se Sade, ao seu tempo, vivesse assim também consideraria isso uma prisão. Não teria era seguramente chegado a aprender a escrever ou, se chegasse, muito improvavelmente teria tido interesse pela literatura. Há poucos dias um amigo, Milton Ribeiro, mostrou-me um livro, Estilhaços (Editorial Record) de um escritor e tradutor amigo seu, Marcelo Backes. Nesse livro, de fragmentos e aforismos, ele escreve: “Viver é escrever para não matar...” Subscrevo por inteiro essa frase. E, se me permitem o abuso, o mesmo se aplicaria a Sade. Na prisão, ele escrevia para não matar. Na minha prisão dos meus dias, que é não ter nada deste mundo, ou muito pouca coisa que lhe interesse, escrevo. Escrevo e penso horas e horas por dia: para não matar e para não me matar. Quem julgue que isto é exagero é porque tem seguramente uma casa e não sabe o que é não tê-la. Tem seguramente algum dinheiro e não sabe o que é não tê-lo. Tem seguramente alguma beleza e não sabe o que é já não tê-la. Quando, burguesmente, alguém diz de outrem que ele escreve muito, deveria averiguar se ele escreve muito porque precisa pra comer, pra não matar ou nãos e matar ou, pelo contrário se escreve muito por vaidade, pra enriquecer mais ou pra ocupar o tédio dos seus dias. Por mim, sei qual é a resposta. E a maior das dificuldades, para comigo mesmo, é estar continuamente dividido entre o desejo de não escrever e não ter outra alternativa a não ser escrever. A minha mágoa é compreender que talvez não se possa escrever fora da prisão. Se conseguir comprar roupas, alugar uma casa é muito provável que deixe de escrever ou, pelo menos, escreva muito pouco e já ninguém me acuse de escrever muito.


Paulo José Miranda
São Paulo, Março de 2006


ADENDA:. Paulo José Miranda, que mora no Brasil há cerca de um ano, também tem um belo blogue. Visite-o: chama-se O Coração Gasta-se. É feito em forma epistolar.

2 comments:

Anonymous said...

PJM é um grande aldrabão, isso sim!

Imagens&Palavras said...

E a Marta podia dizer o porquê dessa afirmação?